Dívidas, cancelamentos, corte de verbas, sumiço de um documento e uma
rede de desinformações vêm tomando conta do principal programa cultural
do governo. Projeto criado em 2004 pela gestão de Gilberto Gil no
Ministério da Cultura (MinC), os Pontos de Cultura tiveram seu orçamento
reduzido para menos da metade do último ano do governo Lula para agora.
Três dos editais destinados às entidades foram cancelados, inclusive
seguindo determinação contrária à da Advocacia Geral da União (AGU), o
que deixou dúzias de grupos culturais do país sem investimentos. Tudo
isso no projeto que, durante a campanha de Dilma Rousseff, foi chamado
de prioritário.
Os Pontos de Cultura são entidades de atuação comunitária no setor e que
recebem investimentos do governo federal, em algumas situações em
parceria com os estados e os municípios. Em setembro de 2010, o grupo
Dilma na Rede, responsável pela campanha oficial da então candidata nas
redes sociais, publicou um vídeo em que a atual presidente disse: "Eu
tenho certeza de que os Pontos de Cultura, esta rede deve ser ampliada.
(...) Considero que são uma das formas mais eficazes de inclusão
digital, cultural e social".
Seu primeiro edital foi lançado em julho de 2004, com cerca de 800
projetos inscritos e 210 selecionados. O programa passou a ser o
carro-chefe na área cultural do governo Lula. Seu orçamento, que em 2004
era de R$ 4 milhões, chegou a R$ 216 milhões em 2010, o último ano de
Lula na presidência.
Mas, a partir daí, com a mudança de gestão, começaram quedas e cortes.
Em 2011, primeiro ano de Dilma, o programa teve disponíveis apenas R$ 80
milhões. Além disso, três editais foram cancelados, o do Agente Cultura
Viva, o do Agente Escola Viva e o do Areté. Os contemplados chegaram a
ser anunciados e reclamam hoje junto ao MinC que houve gastos na
confiança de que o compromisso acordado seria mantido.
No caso do Escola Viva, um edital lançado em 2009 que daria bolsas no
valor de R$ 300 mensais para mil jovens atuantes nos Pontos de Cultura, o
argumento utilizado pelo MinC para o cancelamento do repasse de
recursos foi que seus prazos de regulamentação e execução caducaram. Em
30 de junho de 2011, a então secretária da Cidadania Cultural do MinC,
Marta Porto, enviou uma carta às entidades selecionadas pelo Agente
Cultura Viva e pelo Agente Escola Viva afirmando que "as análises
jurídicas dos instrumentos (...) revelaram a inexistência de alternativa
legal para a convalidação dos atos referentes aos dois editais, tendo
em vista que ambos encontram-se expirados". A carta diz ainda que uma
solução foi buscada "junto à Advocacia Geral da União" e que instalaria
uma sindicância administrativa "para apurar responsabilidades internas
nos procedimentos administrativos que resultaram na perda de vigência
desses editais".
Porém, em 5 de abril de 2011, quase três meses antes do cancelamento dos
editais, a mesma AGU citada pelo MinC para justificar o cancelamento do
Agente Escola Viva enviou um parecer ao ministério sobre o assunto.
Assinado por Daniela Guimarães Goulart, coordenadora-geral de Convênios e
Editais de Seleção Pública, o parecer ao qual O GLOBO teve acesso diz
que "o edital é válido até 20/12/2011, cabendo, ainda, a sua
prorrogação". O texto da AGU concluiu: "O empenho correspondente ao
Edital Bolsa Agente Escola Viva 2009 continua em vigor e o apoio
previsto no edital pode ser concedido aos selecionados".
O parecer da AGU, porém, não foi levado em conta pelo ministério. De
acordo com fontes de dentro do MinC, o documento teria sido retirado do
processo à revelia para não impedir o cancelamento do edital.
Outro problema diz respeito ao edital dos Pontões de Cultura. Trata-se
de uma nova categoria criada em 2010, destinada a instituições com
capacidade de articulação em rede com outros centros menores. No edital,
foram selecionados 129 Pontões de Cultura, que receberiam cerca de R$
250 mil cada num ano. Mas, segundo informações do próprio MinC, apenas
42 desses tiveram o valor depositado, totalizando R$ 10,34 milhões. No
ano passado, contudo, o ministério anunciou que suspenderia os
pagamentos para investigar possíveis erros no procedimento do edital.
— Nós fomos selecionados pelos Pontões de Cultura, mas nunca recebemos.
Temos trabalhos com vários estados brasileiros e com outros países. É
essa a ideia do programa: poder integrar atividades diferentes em torno
da economia da cultura — diz o sociólogo Geo Britto, que coordena o
Ponto de Cultura do Centro de Teatro do Oprimido, do Rio. — Hoje, os
Pontos de Cultura estão sendo implantados na Argentina e na Colômbia.
Foi uma política brasileira que serviu de exemplo para o exterior.
Para este ano, há uma dúvida não esclarecida pelo MinC sobre o orçamento
dos Pontos. Num primeiro momento, foi anunciado pela pasta que o valor
seria de R$ 114 milhões, mas, após os cortes, ele teria caído para R$ 79
milhões. O problema é que, para 2012, foi retirada do orçamento do MinC
a rubrica Cultura Viva, exatamente aquela que garantia a verba para o
programa. O ministério vem afirmando que a alteração se deve a uma
reformulação de programas e planilhas, feita a pedido do Ministério do
Planejamento. Teme-se que, sem uma rubrica para dar guarita ao projeto,
fique mais fácil esvaziar os Pontos de Cultura.
Hoje, para que o MinC honre os compromissos firmados com os quase 3.500
Pontos de Cultura em atividade, seriam necessários pelo menos R$ 200
milhões. De resíduos a pagar dos anos anteriores, o MinC deve R$ 107,8
milhões, mais os R$ 55,8 milhões dos três editais que foram cancelados e
dos Pontões.
— Até agora, existe uma distância imensa do projeto para a cultura
praticado pelo governo Dilma em relação ao que se fazia no governo Lula —
diz Marcelo das Histórias, responsável pelo Pontão de Cultura Nina
Griô, de Campinas. — Foi criado um número de quebra-molas "técnico"
feito a grosso modo para limitar os movimentos sociais que foram o
grande protagonista do governo Lula para a área da cultura.
O movimento dos Pontos de Cultura, agora, se articula para entrar na
Justiça contra o governo. O MinC foi procurado pelo GLOBO na
segunda-feira, com o pedido de esclarecimentos até as 11h de ontem. A
pasta não respondeu sobre o documento da AGU, não tratou do orçamento de
2012 e nem explicou como fará para pagar os Pontos com a verba
disponível. Por e-mail, o MinC apenas respondeu que os Pontos continuam
sendo prioridade e que, "em 2011, foram pagos R$ 47,53 milhões dos
compromissos assumidos". Afirmou, ainda, sobre os Pontões de Cultura,
que "o compromisso orçamentário firmado foi muito maior do que o
orçamento disponível".
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