sábado, 10 de março de 2012

Projeto Pontos de Cultura, criado pelo governo, sofre esvaziamento e deve ir à Justiça


Dívidas, cancelamentos, corte de verbas, sumiço de um documento e uma rede de desinformações vêm tomando conta do principal programa cultural do governo. Projeto criado em 2004 pela gestão de Gilberto Gil no Ministério da Cultura (MinC), os Pontos de Cultura tiveram seu orçamento reduzido para menos da metade do último ano do governo Lula para agora. Três dos editais destinados às entidades foram cancelados, inclusive seguindo determinação contrária à da Advocacia Geral da União (AGU), o que deixou dúzias de grupos culturais do país sem investimentos. Tudo isso no projeto que, durante a campanha de Dilma Rousseff, foi chamado de prioritário.

Os Pontos de Cultura são entidades de atuação comunitária no setor e que recebem investimentos do governo federal, em algumas situações em parceria com os estados e os municípios. Em setembro de 2010, o grupo Dilma na Rede, responsável pela campanha oficial da então candidata nas redes sociais, publicou um vídeo em que a atual presidente disse: "Eu tenho certeza de que os Pontos de Cultura, esta rede deve ser ampliada. (...) Considero que são uma das formas mais eficazes de inclusão digital, cultural e social".

Seu primeiro edital foi lançado em julho de 2004, com cerca de 800 projetos inscritos e 210 selecionados. O programa passou a ser o carro-chefe na área cultural do governo Lula. Seu orçamento, que em 2004 era de R$ 4 milhões, chegou a R$ 216 milhões em 2010, o último ano de Lula na presidência.

Governo não respeita parecer da AGU

Mas, a partir daí, com a mudança de gestão, começaram quedas e cortes. Em 2011, primeiro ano de Dilma, o programa teve disponíveis apenas R$ 80 milhões. Além disso, três editais foram cancelados, o do Agente Cultura Viva, o do Agente Escola Viva e o do Areté. Os contemplados chegaram a ser anunciados e reclamam hoje junto ao MinC que houve gastos na confiança de que o compromisso acordado seria mantido.

No caso do Escola Viva, um edital lançado em 2009 que daria bolsas no valor de R$ 300 mensais para mil jovens atuantes nos Pontos de Cultura, o argumento utilizado pelo MinC para o cancelamento do repasse de recursos foi que seus prazos de regulamentação e execução caducaram. Em 30 de junho de 2011, a então secretária da Cidadania Cultural do MinC, Marta Porto, enviou uma carta às entidades selecionadas pelo Agente Cultura Viva e pelo Agente Escola Viva afirmando que "as análises jurídicas dos instrumentos (...) revelaram a inexistência de alternativa legal para a convalidação dos atos referentes aos dois editais, tendo em vista que ambos encontram-se expirados". A carta diz ainda que uma solução foi buscada "junto à Advocacia Geral da União" e que instalaria uma sindicância administrativa "para apurar responsabilidades internas nos procedimentos administrativos que resultaram na perda de vigência desses editais".

Porém, em 5 de abril de 2011, quase três meses antes do cancelamento dos editais, a mesma AGU citada pelo MinC para justificar o cancelamento do Agente Escola Viva enviou um parecer ao ministério sobre o assunto. Assinado por Daniela Guimarães Goulart, coordenadora-geral de Convênios e Editais de Seleção Pública, o parecer ao qual O GLOBO teve acesso diz que "o edital é válido até 20/12/2011, cabendo, ainda, a sua prorrogação". O texto da AGU concluiu: "O empenho correspondente ao Edital Bolsa Agente Escola Viva 2009 continua em vigor e o apoio previsto no edital pode ser concedido aos selecionados".

O parecer da AGU, porém, não foi levado em conta pelo ministério. De acordo com fontes de dentro do MinC, o documento teria sido retirado do processo à revelia para não impedir o cancelamento do edital.

Outro problema diz respeito ao edital dos Pontões de Cultura. Trata-se de uma nova categoria criada em 2010, destinada a instituições com capacidade de articulação em rede com outros centros menores. No edital, foram selecionados 129 Pontões de Cultura, que receberiam cerca de R$ 250 mil cada num ano. Mas, segundo informações do próprio MinC, apenas 42 desses tiveram o valor depositado, totalizando R$ 10,34 milhões. No ano passado, contudo, o ministério anunciou que suspenderia os pagamentos para investigar possíveis erros no procedimento do edital.

— Nós fomos selecionados pelos Pontões de Cultura, mas nunca recebemos. Temos trabalhos com vários estados brasileiros e com outros países. É essa a ideia do programa: poder integrar atividades diferentes em torno da economia da cultura — diz o sociólogo Geo Britto, que coordena o Ponto de Cultura do Centro de Teatro do Oprimido, do Rio. — Hoje, os Pontos de Cultura estão sendo implantados na Argentina e na Colômbia. Foi uma política brasileira que serviu de exemplo para o exterior.

MinC deve R$ 163,6 milhões

Para este ano, há uma dúvida não esclarecida pelo MinC sobre o orçamento dos Pontos. Num primeiro momento, foi anunciado pela pasta que o valor seria de R$ 114 milhões, mas, após os cortes, ele teria caído para R$ 79 milhões. O problema é que, para 2012, foi retirada do orçamento do MinC a rubrica Cultura Viva, exatamente aquela que garantia a verba para o programa. O ministério vem afirmando que a alteração se deve a uma reformulação de programas e planilhas, feita a pedido do Ministério do Planejamento. Teme-se que, sem uma rubrica para dar guarita ao projeto, fique mais fácil esvaziar os Pontos de Cultura.

Hoje, para que o MinC honre os compromissos firmados com os quase 3.500 Pontos de Cultura em atividade, seriam necessários pelo menos R$ 200 milhões. De resíduos a pagar dos anos anteriores, o MinC deve R$ 107,8 milhões, mais os R$ 55,8 milhões dos três editais que foram cancelados e dos Pontões.

— Até agora, existe uma distância imensa do projeto para a cultura praticado pelo governo Dilma em relação ao que se fazia no governo Lula — diz Marcelo das Histórias, responsável pelo Pontão de Cultura Nina Griô, de Campinas. — Foi criado um número de quebra-molas "técnico" feito a grosso modo para limitar os movimentos sociais que foram o grande protagonista do governo Lula para a área da cultura.

O movimento dos Pontos de Cultura, agora, se articula para entrar na Justiça contra o governo. O MinC foi procurado pelo GLOBO na segunda-feira, com o pedido de esclarecimentos até as 11h de ontem. A pasta não respondeu sobre o documento da AGU, não tratou do orçamento de 2012 e nem explicou como fará para pagar os Pontos com a verba disponível. Por e-mail, o MinC apenas respondeu que os Pontos continuam sendo prioridade e que, "em 2011, foram pagos R$ 47,53 milhões dos compromissos assumidos". Afirmou, ainda, sobre os Pontões de Cultura, que "o compromisso orçamentário firmado foi muito maior do que o orçamento disponível".

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