"Vidro na sapatilha, tirar colchete de vestido antes do espetáculo, agulha no arranjo de cabelo, tudo isso eu sei que acontece, mesmo parecendo exagero", diz a bailarina brasileira Mariana Gomes, 24. "Já vi muita coisa e já perdoei muitos casos deste tipo, mas, dessa vez, não", afirma, sobre o ataque contra o diretor artístico do Balé Bolshoi, Sergei Filin, 42, atingido por ácido sulfúrico na quinta (17).
Em depoimento à Folha, a bailarina fala sobre a rivalidade que culminou com a agressão e sobre o clima nos ensaios do grupo. "Temos pavor de pensar que pessoas como essas podem estar no nosso camarim, podem estar dançando valsa comigo em algum ato de algum balé."
Atacado em frente ao prédio onde mora, no centro de Moscou, Filin sofreu queimaduras de terceiro grau no rosto e na córnea, mas os médicos afirmaram que o ex-bailarino não corre risco de perder a visão.
Sergei Filin, antes (esq.) e depois do ataque com ácido em seu rosto |
"Teatro é um meio cruel, onde nossa carreira é curta, bailarinos são muitos, sonhos maiores ainda e o pior, ambição. Todos amam o que fazem, às vezes nos cansa, irrita, muita força, trabalho, suor e energia gastos e o retorno nem sempre corresponde ao esperado. Já vi bailarinos que se drogam, se alcoolizam, existem casos até que foram parar em manicômios durante turnês. Tudo isso acontece, e entendo bem o porquê estando neste meio. Já vi bailarino andando na rua de tarde, na hora do almoço, e cumprimentando pessoas na rua como se estivesse representando no palco o papel do dia de gladiador. Já vi muita coisa e já perdoei muitos casos deste tipo, mas, dessa vez, não. Não entra na minha cabeça tamanha ambição. Esse exagero é o reflexo do que vem acontecendo com os artistas ali dentro, é o auge, o que faz todo mundo pensar no que está acontecendo. Uma tragédia: Sergei nos últimos dias não enxerga e reage somente a luz, claro e escuro --foi a última notícia que tive dele.
Frequentamos igrejas, acendemos velas, os ensaios começaram com mensagens e choro. Temos pavor de pensar que pessoas como essas podem estar no nosso camarim, podem estar dançando valsa comigo em algum ato de algum balé. Quando cheguei ao teatro Bolshoi, sete anos atrás, Sergei Filin ainda era primeiro bailarino. Lembro quando dancei o balé 'Cinderella' e ele descia a escada do segundo ato no baile sentado no corrimão, escorregando, e a platéia gritava: oooooh! Realmente, técnica, beleza, carisma de causar espanto e, obviamente, inveja.
Anos depois, ele foi diretor do Teatro Stanislavski, segundo maior teatro de Moscou, e chegou como diretor do Bolshoi no auge, com a reabertura do palco histórico, em outubro de 2011. Cargo muito concorrido, antes ocupado por Yuri Burlaka e Alexei Ratmanski. Mas nenhum desses diretores sofreu tal pressão de artistas, imprensa e público. Sergei chegou no momento em que o teatro explodiu, com transmissão on-line e em cinemas, abertura do palco, grandes turnês e muito sucesso.
No meu primeiro ano de Bolshoi, ainda sem falar muitas palavras em russo, lembro que recebi comunicado do teatro de que eu deveria pagar taxa equivalente a US$ 200 para me registrar na cidade legalmente. Eu, estagiária na época, sem salário, chorava no restaurante do teatro sozinha, quando Sergei, aquele primeiro bailarino, príncipe, chegou até mim e perguntou o que havia acontecido. Pela primeira vez alguém tinha tentado falar inglês comigo. Eu contei a situação e ele me disse que resolveria. No dia seguinte, fui chamada ao caixa do Bolshoi, recebi o valor e assinei um recibo de 'ajuda de custo'. Nunca esqueci isso. Depois de anos de trabalho, ao saber que este Sergei Filin seria nosso diretor, fiquei realmente contente. Mesmo sabendo que ele não se lembra dessa história.
Só o que posso fazer é rezar por ele e pelos artistas que amam sua profissão e realmente estão perdendo a noção dos valores da vida. Rezo por essas pessoas que vêm transformando sonhos em pesadelos. Rezo para que esse templo Bolshoi continue sendo um ambiente de paz antes da concorrência, de arte antes do crime. E, com esses sentimentos no coração e lágrimas nos olhos, os espetáculos continuam e nunca vão parar, pois o dever do artista é acalmar e encantar o público, mesmo que por dentro do sorriso esteja mergulhado em dores, dúvidas e medos."
Fonte: Folha de S. Paulo
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